sexta-feira, 13 de maio de 2016

Prova cega

1. Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. 

2.  Há coisas de que me lembro e fazem crescer dentro de mim um bloco de saudade, enfeitado de lágrimas secretas. Por exemplo ouvir a minha mãe dizer
           – Avó
para uma senhora de cabelos brancos que eu tratava por Avó Bisa, me chamava
        – Rapaz
e o facto de me chamar rapaz fazia-me, sei lá porquê, sentir importantíssimo. Recordo-me do cheiro dela, das mãos dela, do sorriso. Morava na mesma rua que nós mas lá em cima, perto do cemitério, cheio de árvores aguçadas que mesmo ao sol eram tristes e ela numa casa que mesmo ao sol era escura. Vestida de preto, só me recordo da Avó Bisa vestida de preto, pequenina, nervosa e o meu avô, um velhíssimo de cinquenta anos, a chamá-la
       – Mãe
ele que, na minha ideia, não tinha direito a uma mãe, para mais uma pessoa que quase não falava. Esse não me ligava nenhuma, ligava à filha que tinha uma adoração por ele. Depois de se ir embora no vidro da fotografia dele havia sempre marcas de baton, e quando a minha mãe dizia
        – A minha família
não se referia ao meu pai e a nós, referia-se aos pais dela e aos irmãos, de quem, aliás, era impossível não gostar: tenho tantas saudades dos setembros em Nelas, tantas saudades da minha avó, que tratávamos por Avó Querida, tantas saudades da doçura e da bondade deles, do meu tio João Maria
(a minha mãe
           – Nunca vi um homem tão bonito como aquele meu irmão)
que, tinha eu treze anos, me ofereceu uma assinatura das Nouvelles Literaires que foram uma mudança decisiva na minha vida
3. Só que neste caso havia uma razão particular para a fúria do Porto e, claro do dr. Rui Moreira, seu defensor e condestável. Depois da renacionalização da TAP, se assim se pode chamar ao confuso negócio do dr. António Costa com os senhores que a tinham comprado, o Estado ficou com 50 por cento da coisa; e não sei se com 50 por cento da dívida e dos poderes. Sucede que os privados desta nova espécie de parceria resolveram cortar ao Porto quatro carreiras, como se Rui Moreira não existisse. Ora Moreira existe e, como seria de esperar, ameaçou imediatamente Lisboa que se ela não usasse os seus 50 por cento, que pertencem também ao Porto, ele exerceria represálias. Ninguém percebeu como, porque não consta que o Porto, ou mesmo o Norte, tenham um exército privativo; e os mouros cá de baixo descansaram.
Erro deles. No dia seguinte, Rui Moreira revelou o seu plano. Iria esperar até que lhe saísse a sorte grande no “Euromilhões”. Com esse dinheiro comprava a TAP de fio a pavio e, a seguir, transferia as carreiras de Lisboa para o Porto. Todas, sem faltar uma. E, assim, como ele explicou com um sorriso feroz, qualquer português que quisesse sair de Portugal, especialmente os políticos, seria obrigado para seu castigo a passar pelo Porto.

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