Uma interessante entrevista com um respeitadíssimo director de arte.
Peter Mendelsund diz que faz capas de livros porque falhou como
músico. “Acho que se tivesse tido sucesso provavelmente continuaria a
tocar piano. Eu costumava tocar piano”, diz o autor de quase mil capas
de livros em mais de doze anos de trabalho para a chancela Alfred A.
Knopf, editora do grupo Penguin Random House. A conversa acontece na sua
sala de trabalho, num andar alto do edifício no número 1745 da
Broadway, em Nova Iorque — sede do grupo nos EUA — menos de duas horas
depois de se saber da morte de Prince. Além da consternação geral que a
notícia provocou há uma interrogação difícil de pronunciar e que diz
respeito àquela casa com qual o músico assinara semanas antes um
contrato para a publicação das suas memórias. Estarão escritas? Serão
escritas? Não é assunto que faça parte das funções de Peter Mendelsund
enquanto director de arte da Knopf. Desde que desistiu do piano como
instrumento de trabalho, continua a tocar diariamente e a admirar o
génio de Glenn Gould, mas o seu trabalho é ler livros e pensar em como
sintetizá-los numa imagem que lhes faça justiça. É assim que se descreve
profissionalmente, como “um leitor que tenta interpretar o que lê o
melhor possível”.
É uma referência na edição e o que faz rapidamente passa a ser modelo a seguir por designers em
todo o mundo. “Veste”, como gosta de dizer, a escrita saída da cabeça e
das mãos de gente como Julio Cortazar, Franz Kafka, Sebald, James
Salter, Thomas Bernhard, o português Antonio Damásio, Martin Amis, Tom
McCarthy ou Camille Paglia. Essa escrita é visualmente traduzida por
Mendelsund num processo que descreve como derrotado à partida. “Sempre
soube que ficaria insatisfeito com qualquer capa que pudesse desenhar
para a obra de arte jazzy, melancólica, metaficcional que é Hopscotch [título em inglês de Rayuela], de Julio Cortazar”, escreve em Cover, uma monografia do seu trabalho publicada em 2014 — em simultâneo com O Que Vemos Quando Lemos (Elsinore, 2015), onde fala e desenha sobre a sua experiência como leitor. Ainda em Cover,
sobre essa ideia do falhanço à partida que é qualquer capa, explica:
“Cada escolha de cor, cada decisão tipográfica, cada divisão de espaço e
cada enxerto pictórico — cada passo é um passo para a concretização de
um livro e portanto para o seu empobrecimento. A minha função é arrastar
o texto, o trabalho do autor, perfeito na sua desencarnação, para uma
especificidade horrível. A um ponto tal que, não importa o quão bem
tenha feito o meu trabalho — não importa como a capa possa estar bonita —
tenho sempre um sentimento de perda”.
“É verdade”, refere agora, óculos pousados sobre a folha branca que parece conter a intensidade filtrada da luz de início de tarde. É ali que trabalha. “Tenho um emprego”, sorri, depois de se lhe perguntar se o estatuto lhe permite escolher os livros “que lê”. “Trabalho aqui na Knopf, mas também faço trabalho de freelance para outras editoras e sou muitas vezes chamado para trabalhar em coisas que me pareçam interessantes. Nesse caso, se não forem não as faço. Mas aqui faço o que tenho de fazer e não há escolha. Muitas vezes trabalho em coisas em conjunto com o autor. É como ser jornalista. Dão-nos uma história e algumas revemo-nos nela, noutras não, mas damos o nosso melhor. Sei que isto pode parecer estranho, mas leio muito lixo. Histórias de amor que se escrevem depressa e mal, e se lêem num instante; mistério, fantasia, terror, crime, ficção científica barata, mas também grandes versões de todos esses géneros, e grande literatura e crítica. Há sempre alguma coisa para gostar num livro. A excepção é quando encontro alguma coisa que politicamente ou eticamente me repugna. Aí digo não, que não posso ter qualquer tipo de intervenção no sentido de ajudar a que aquilo saia para o mundo.”
Está rodeado de livros que marcam a evolução do que tem feito. O
que se vê ali reconhece-se das livrarias, das páginas de suplementos
literários. É o que tem feito desde o dia em que se candidatou a um
emprego que achou que não ia conseguir manter por mais de um mês. Uma
decisão vinda da necessidade e de uma reunião com a mulher que começou
com uma lista, a de coisas que era capaz de fazer além de tocar piano.
Jogar à bola, escrever, ler, desenhar. Conta que tinha desenhado os
convites para o seu casamento e gostou. Decidiu aprender mais. Investiu
tempo nisso, menos do que no piano, e chegou à Knopf onde lhe foi pedido
para fazer a capa de Chopin’s Funeral, livro de Benita Eisler.
Seria a primeira das suas capas. “O desenho de capas não é uma coisa
estanque. Estou sempre à procura de alguma coisa que nunca tenha sido
feita”, adianta, como se essa ausência fosse também literária, como os
silêncios por preencher de um romance. É preciso encontrar a imagem,
como a palavra, ou então deixar em branco num exercício que convoca e
desafia a liberdade o leitor. À frente tem um livro de W. G. Sebald.
Está a escrever um artigo sobre a sua relação com a escrita do autor de Os Emigrantes para a Harper’s Magazine, sobre como foi lê-lo e construir uma capa que reflectisse essa experiência.
“Quando eu era pianista e tocar piano não me pagava as contas, eu trabalhava numa livraria que agora já não existe. A Susan Sontag costumava ir lá muito. Ela era uma grande entusiasta de Sebald e estava sempre a dizer-nos que o tínhamos de ler. E eu li Os Emigrantes. Foi o primeiro. É muito difícil explicar a alguém que nunca tenha lido Sebald porque é que ele é tão extraordinário e lê-lo é uma experiência tão especial. Não há muita coisa a acontecer, ele anda às voltas, tudo está relacionado com refugiados da II Grande Guerra; há muita tragédia, mas ele nunca fala disso directamente, e há muita obsessão, como se cada livro fosse o mesmo, e sempre de uma forma interessante. E os seus livros, de alguma forma, representam-nos, a nós, através de um imaginário visual.” Vestir um livro de Sebald não é, por isso, como vestir a maioria dos livros. “Há neles fotografias, e há qualquer coisa sobre a forma como essas fotografias actuam no leitor de Sebald. Elas desestabilizam-nos; estamos a ler e constantemente a questionar-nos se estamos perante ficção ou não ficção, sobre o que é aquilo. As fotos são reais, mas não reais no modo como ele escolhe posicioná-las no livro; ele torna-as ficcionais em toda a ideia de que as imagens representam coisas, no sentido em que as mapeiam, e tudo se torna muito confuso. Gosto muito disso nele. Lemos o livro e temos uma espécie de noção do que ele está a tentar atravessar. E talvez seja uma imagem ou talvez não; pode ser linguagem pura, mas eu, numa capa, tenho de dizer isso de forma límpida, dizer como é que isso se parece. A minha questão é: como posso tornar isso visualmente reconhecível para outra pessoa?”
A descrição de um rosto, de uma paisagem; o desenrolar de um enredo. O modo como isso gera imagens a a ilusão de que gera imagens. Vemos quando lemos? O que? Não será que apenas imaginemos que vemos quando lemos? “Tudo isto é muito confuso. Os neurocientistas tentam explicar, e os filósofos da cognição. Ler sem imagens é possível? É muito complicado falar disso. Podemos simplesmente dizer que vemos imagens nas nossas mentes e alguém pode facilmente dizer que talvez apenas imaginemos imaginar imagens e chegamos a um ponto em que já nada perece definido. Enquanto leitor já estive próximo de um sentimento de experimentar apenas significado em vez de imagens”, diz sobre o desafio que é a sua pergunta-resposta no título do livro onde expõe a sua intimidade enquanto leitor. “Sim, tudo o que se passa no processo de leitura é muito íntimo”, concede, acrescentando: “Não há uma experiência de leitura igual, e muitas vezes o modo como a tentamos comunicar passa por clichés. Isso, como designer assusta-me. Não quero cair no cliché, na repetição de fórmulas fáceis para comunicar um livro. Nem aqueles escritos para serem best-sellers.”
Estamos sempre na leitura. É aí a génese do trabalho de um
desenhador de capas que nunca é, no entanto, o primeiro leitor de um
livro, mas que, como afirmou o escritor Tom McCarthy justamente sobre o
trabalho do criador de capas, é o “mais radical” e um dos fundamentais.
“Os designers de capas lêem livros da mesma forma que os adivinhos lêem
folhas de plantas ou entranhas”, escreve o romancista inglês na
introdução de Cover, acrescentando que “são como fenomenologistas,
envolvidos no acto de desenhar de forma lírica e penetrante, de fazer
manifestos”.
Como passar um rosto de um clássico? “Nunca o representado tal como vem descrito”, responde, sabendo que o que ele vê numa descrição não é o que outro leitor vê. Por isso escreve em O que Vemos Quando Lemos: “…qual é a aparência de Anna Karénina? É possível sentir que conhece intimamente uma personagem (as pessoas gostam de dizer, em relação a uma personagem muito bem descrita, ‘é como se a conhecesse’) sem que isso signifique que está de facto a visualizar uma pessoa. Nada tão firme; nada tão total.” É por isso que a capa falha sempre, como referiu dando o exemplo de Rayuela? “A função da capa é vender o livro e representá-lo de forma adequada. Não há uma fórmula para o fazer. A criatividade está nisso”, começa por responder com a rapidez de quem já teve tantas vezes de pensar e responder a uma pergunta semelhante, mas sem manifestar enfado, tentando novos exemplos, indo buscar estímulos. “Adoro Kafka e toda a obra dele na América tem capas horríveis. Não sei porquê. Percebi que os Aforismos dele não estavam reunidos numa edição aqui e propus isso, que o fizessem, desenharia uma capa.” O sucesso do pequeno livro — cuja capa se inspira no abstraccionismo que marcou o trabalho de outro director gráfico Alvin Lustig, famoso designer de capas das décadas de 40 e 50 — levou a Knopf a reeditar a obra do autor checo com todas as capas da autoria de Mendelsund. Elas estão e destaque na sala da Broadway como imagem de marca. Da casa e do designer. “Fico sempre surpreendido com o facto de uma ideia minha ter adesão. Porque nasce dessa coisa íntima”, salienta, “nasce de uma busca constante, pessoal, e nisso lembro sempre as palavras de Cortazar que cito em Cover.” São mais ou menos assim: “Percebi que a procura era o meu símbolo, o emblema daqueles que saem à noite sem nada na cabeça, a motivação de um destruidor de bússolas.” Quando uma fórmula é bem sucedida torna-se enfadonha e passa-se outra vez ao desconhecido, ao silêncio da literatura.
Uma capa é sempre uma falha
“É verdade”, refere agora, óculos pousados sobre a folha branca que parece conter a intensidade filtrada da luz de início de tarde. É ali que trabalha. “Tenho um emprego”, sorri, depois de se lhe perguntar se o estatuto lhe permite escolher os livros “que lê”. “Trabalho aqui na Knopf, mas também faço trabalho de freelance para outras editoras e sou muitas vezes chamado para trabalhar em coisas que me pareçam interessantes. Nesse caso, se não forem não as faço. Mas aqui faço o que tenho de fazer e não há escolha. Muitas vezes trabalho em coisas em conjunto com o autor. É como ser jornalista. Dão-nos uma história e algumas revemo-nos nela, noutras não, mas damos o nosso melhor. Sei que isto pode parecer estranho, mas leio muito lixo. Histórias de amor que se escrevem depressa e mal, e se lêem num instante; mistério, fantasia, terror, crime, ficção científica barata, mas também grandes versões de todos esses géneros, e grande literatura e crítica. Há sempre alguma coisa para gostar num livro. A excepção é quando encontro alguma coisa que politicamente ou eticamente me repugna. Aí digo não, que não posso ter qualquer tipo de intervenção no sentido de ajudar a que aquilo saia para o mundo.”
“Quando eu era pianista e tocar piano não me pagava as contas, eu trabalhava numa livraria que agora já não existe. A Susan Sontag costumava ir lá muito. Ela era uma grande entusiasta de Sebald e estava sempre a dizer-nos que o tínhamos de ler. E eu li Os Emigrantes. Foi o primeiro. É muito difícil explicar a alguém que nunca tenha lido Sebald porque é que ele é tão extraordinário e lê-lo é uma experiência tão especial. Não há muita coisa a acontecer, ele anda às voltas, tudo está relacionado com refugiados da II Grande Guerra; há muita tragédia, mas ele nunca fala disso directamente, e há muita obsessão, como se cada livro fosse o mesmo, e sempre de uma forma interessante. E os seus livros, de alguma forma, representam-nos, a nós, através de um imaginário visual.” Vestir um livro de Sebald não é, por isso, como vestir a maioria dos livros. “Há neles fotografias, e há qualquer coisa sobre a forma como essas fotografias actuam no leitor de Sebald. Elas desestabilizam-nos; estamos a ler e constantemente a questionar-nos se estamos perante ficção ou não ficção, sobre o que é aquilo. As fotos são reais, mas não reais no modo como ele escolhe posicioná-las no livro; ele torna-as ficcionais em toda a ideia de que as imagens representam coisas, no sentido em que as mapeiam, e tudo se torna muito confuso. Gosto muito disso nele. Lemos o livro e temos uma espécie de noção do que ele está a tentar atravessar. E talvez seja uma imagem ou talvez não; pode ser linguagem pura, mas eu, numa capa, tenho de dizer isso de forma límpida, dizer como é que isso se parece. A minha questão é: como posso tornar isso visualmente reconhecível para outra pessoa?”
O tradutor
O trabalho de Peter Mendelsund é também por tudo isto um trabalho de tradução. De uma linguagem para outra. De um modo extenso para outro simbólico, metafórico. “Passar a palavra para a imagem também é isso”, continua. “Na leitura surge uma imagem, uma espécie de momento epifânico em que vemos o que o livro é, depois é preciso fazer essa tradução activa.” É o momento da execução ao longo do quando, no entanto, permanece sem resposta para a pergunta que formulou, sem ponto de interrogação, no título do livro O Que Vemos Quando Lemos. É um exercício sobre a fenomenologia da leitura. Há pouco mais de dois anos recebi um e-mail a perguntar-me se eu estaria interessado em fazer uma monografia do meu trabalho de designer. Aceitei e deram-me oito ou nove meses para o fazer. Tinha de recolher imagens e escrever dois ensaios. Não era complicado, e nasceu Cover. Mas quando terminei fiquei muito aflito. Porque é que alguém haveria de estar interessado neste livro? Além disso achei que representava apenas um lado do que eu fazia. Não me representava enquanto leitor e ocorreu-me que se pudesse representar o meu lado de leitor isso ajudaria o outro livro a vender e vice-versa. Recuperei então um pequeno post que tinha no meu blogue sobre uma conversa o com um amigo acerca de ler e imaginar e pensei que podia transformar aquilo em alguma coisa. Consegui vender a ideia e tive sete meses para a escrever. Dessa vez era muito pouco. Nesse livros não há muitas palavras, mas o resultado da elaboração de um pensamento. O meu acerca do que a leitura me suscita”.A descrição de um rosto, de uma paisagem; o desenrolar de um enredo. O modo como isso gera imagens a a ilusão de que gera imagens. Vemos quando lemos? O que? Não será que apenas imaginemos que vemos quando lemos? “Tudo isto é muito confuso. Os neurocientistas tentam explicar, e os filósofos da cognição. Ler sem imagens é possível? É muito complicado falar disso. Podemos simplesmente dizer que vemos imagens nas nossas mentes e alguém pode facilmente dizer que talvez apenas imaginemos imaginar imagens e chegamos a um ponto em que já nada perece definido. Enquanto leitor já estive próximo de um sentimento de experimentar apenas significado em vez de imagens”, diz sobre o desafio que é a sua pergunta-resposta no título do livro onde expõe a sua intimidade enquanto leitor. “Sim, tudo o que se passa no processo de leitura é muito íntimo”, concede, acrescentando: “Não há uma experiência de leitura igual, e muitas vezes o modo como a tentamos comunicar passa por clichés. Isso, como designer assusta-me. Não quero cair no cliché, na repetição de fórmulas fáceis para comunicar um livro. Nem aqueles escritos para serem best-sellers.”
Como passar um rosto de um clássico? “Nunca o representado tal como vem descrito”, responde, sabendo que o que ele vê numa descrição não é o que outro leitor vê. Por isso escreve em O que Vemos Quando Lemos: “…qual é a aparência de Anna Karénina? É possível sentir que conhece intimamente uma personagem (as pessoas gostam de dizer, em relação a uma personagem muito bem descrita, ‘é como se a conhecesse’) sem que isso signifique que está de facto a visualizar uma pessoa. Nada tão firme; nada tão total.” É por isso que a capa falha sempre, como referiu dando o exemplo de Rayuela? “A função da capa é vender o livro e representá-lo de forma adequada. Não há uma fórmula para o fazer. A criatividade está nisso”, começa por responder com a rapidez de quem já teve tantas vezes de pensar e responder a uma pergunta semelhante, mas sem manifestar enfado, tentando novos exemplos, indo buscar estímulos. “Adoro Kafka e toda a obra dele na América tem capas horríveis. Não sei porquê. Percebi que os Aforismos dele não estavam reunidos numa edição aqui e propus isso, que o fizessem, desenharia uma capa.” O sucesso do pequeno livro — cuja capa se inspira no abstraccionismo que marcou o trabalho de outro director gráfico Alvin Lustig, famoso designer de capas das décadas de 40 e 50 — levou a Knopf a reeditar a obra do autor checo com todas as capas da autoria de Mendelsund. Elas estão e destaque na sala da Broadway como imagem de marca. Da casa e do designer. “Fico sempre surpreendido com o facto de uma ideia minha ter adesão. Porque nasce dessa coisa íntima”, salienta, “nasce de uma busca constante, pessoal, e nisso lembro sempre as palavras de Cortazar que cito em Cover.” São mais ou menos assim: “Percebi que a procura era o meu símbolo, o emblema daqueles que saem à noite sem nada na cabeça, a motivação de um destruidor de bússolas.” Quando uma fórmula é bem sucedida torna-se enfadonha e passa-se outra vez ao desconhecido, ao silêncio da literatura.
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